17 de nov. de 2019

O Perigo Branco (1909)


    Publicado em 1909, o romance "A Batalha", de Claude Farrère, explora o tema da modernização do Japão e o processo de rejeição de suas tradições e costumes através da visão do pintor francês João Francisco Felze. O romance, que se desdobra durante os eventos da Guerra Russo-Japonesa, culmina na vitória da Terra do Sol Nascente sobre o já moribundo e estagnado império ocidental: momento este que marca o reconhecimento do Japão como potência imperial pelas nações europeias. Recebeu em 1935 sua tradução à língua portuguesa pelo grande acadêmico Gustavo Dodt Barroso, da qual extraímos o seguinte trecho:

    "Felze, informado dos hábitos, quis tirar os sapatos; mas a criada, de novo prosternada, impediu-o respeitosamente.
    — Está bem! resmungou com certo espanto, conservam-se as botas na casa dos marqueses?
    Ligeiramente decepcionado no seu gosto pelo exotismo, resignou-se a só tirar o chapéu [...].
    E João Francisco Felze, de cabeça descoberta e pés calçados, entrou no salão da marquesa Yorisaka.
    Um bouduir de parisiense, elegantíssimo, na última moda, que seria trivialíssimo em qualquer lugar, menos a três mil léguas do parque Monceau. Nada que traísse o Japão. As próprias alcatifas nacionais, os tatames, mais macios e fofos do que quaisquer outros do mundo, haviam sido substituídos por tapetes de lã. Tapeçarias à Pompadour vestiam as paredes e cortinas de damasco penduravam-se das janelas com vidraça! Cadeiras, poltronas, uma espreguiçadeira e um sofá estavam no lugar das clássicas esteirinhas de palha de arroz ou dos quadrados de veludo escuro. Um grande piano de Erard enchia um canto. Diante da porta de entrada, um espelho Luís XV refletia, talvez com espanto, as carinhas amarelas das musmés ao invés das faces rosadas das francesinhas.
    Pela terceira vez, a criada fez sua prosternação e retirou-se, deixando Felze só. Ele deu dois passos, olhou para a direita e para a esquerda; depois praguejou violentamente:
    — Santo Deus! [...] Que adiantou a felicidade única de ter vivido dez séculos no mais esplêndido isolamento, fora de todas as influências despóticas que podaram nossa originalidade ocidental, livres do jugo egípcio, livres do jugo helênico! Que adiantou ter tido a China impenetrável como baluarte contra a Europa e Confúcio como cão de guarda contra Platão! . . . Que adiantou, para tropeçar, no fim de tudo, no plágio e na macaqueação, acabando numa gaiola de periquito de Paris ou de Londres, ou pior, de Nova York ou de Chicago! . . .

[ . . . ]

    —  Hum! —  pensou Felze, não são talvez os soldados de Linevitch nem os navios de Rozhestvensky que ameaçam mais neste momento a civilização japonesa, mas antes isto aqui, a invasão pacífica, o perigo branco . . ."

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