26 de mar. de 2022

O Município na Estrutura do Estado Federal Brasileiro — Miguel Reale

I

Federalismo e estadualismo na Constituição de 1891

1. Sem obedecer a um plano preconcebido, que teria sido, aliás, artificial e possivelmente infecundo, mas também sem clara e persistente preocupação pelos problemas de ordem doutrinária, ventilados nas mais recentes teorias do federalismo, veio aos poucos se delineando no Brasil um tipo de Estado Federal, que apresenta inovações e características próprias, ainda não submetidas a necessário lavor de interpretação e construção dogmático-jurídicas.

Não obstante alguns ensaios de mérito, pode-se dizer que mal se esboça a teoria de nosso federalismo, para cuja compreensão ainda prevalece o hábito de se invocarem, sem maior rigor técnico, conceitos peculiares a sistemas de diversa contextura; e, enquanto alguns perseveram no apego às categorias tradicionais do federalismo norte-americano, outros proclamam, talvez com certa afoiteza, originalidades teóricas merecedoras de mais acurada análise.

Por mais que seja grave o risco de buscar originalidade em domínio lavrado por tantas experiências político-sociais em todos os quadrantes do orbe, (1) não me parece desarrazoado afirmar que algo de novo surgiu, efetivamente, no perfil do Estado Federal brasileiro. 

Dar as razões desses novos aspectos é tarefa que demanda recurso a elementos históricos e sociológicos, em uma indagação que supera as fronteiras da Ciência do Direito, para envolver questões de Teoria do Estado e, mais particularmente, de Política do Direito.

De maneira geral, podemos adiantar que as conjunturas de 1946 foram propícias a uma revisão de nossa prática federalista, mal saídos que estávamos de uma experiência de centralização político-administrativa, que, apesar de exageros manifestos, tivera o mérito de atenuar o centrifugismo que caracterizara a vida da primeira República, quando alguns Estados mais poderosos chegaram a medir forças com os poderes da União.

Em verdade, o que caracteriza o ordenamento federativo até a revolução de 1930 é o predomínio da política dos governadores, possuindo existência prática o dispositivo constitucional então vigente (Artigo 65 — item 2º), que assegurava “aos Estados todo e qualquer poder, ou direito que lhe não fosse negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da Constituição”, o que correspondia ao modelo do federalismo norte-americano. (2)

Por outras palavras, os principais personagens da Constituição de 1891 foram os Estados, vivendo a União de restos de poder prévia e taxativamente discriminados. Resultava daí a preocupação por uma política de equilíbrio entre as forças regionais, cujos acordos ou divergências marcaram todo o processo da vida republicana, projetando sempre a sombra de uma espada, quando não era esta que atuava no bojo das controvérsias políticas, dando débil colorido teórico às mais variadas reivindicações das forças armadas. Num regime praticamente unipartidário, dada a carência de substância das correntes minoritárias, o exército interferia diretamente no cenário político como se fora o “outro partido” da Nação…

2. O estadualismo da Constituição de 91 representou o apogeu de uma progressão natural no sentido do primado das forças econômico-políticos regionais, desde logo reveladas no primeiro Reinado graças à oportuna política descentralizadora consagrada no Ato Adicional. 

A esses naturais impulsos descentralizadores, com o advento da República, aliou-se uma superestrutura ideológica, de cunho positivista, avessa ao sentido das grandes comunidades, com marcada tendência para o endeusamento das pequenas pátrias, ponto do qual faziam cabedal os adeptos mais fiéis de Augusto Comte. Jamais deve ser olvidado esse substrato ideológico da modelagem inicial do federalismo brasileiro, durante largo tempo tomado por debates em torno dos conceitos de “soberania” e de “autonomia”.

Não se deve esquecer, com efeito, que, no seio da primeira Assembleia Nacional Constituinte republicana, agitaram-se as mais desencontradas correntes, acentuando a nota estadualista, chegando alguns, com Campos Sales à frente, a reivindicar para os Estados até mesmo “soberania”, como se não tivéssemos seguido exatamente o caminho inverso do processo de integração da república da América do Norte, onde as antigas colônias, antes independentes umas em relação às outras, se dispuseram a confederar-se, enquanto que, entre nós, um Estado unitário nacional se discriminara em esferas autônomas de competências.

Essa diferença de formação, entre o regime federativo no Brasil e nos Estados Unidos, foi amplamente glosada por nossos pensadores políticos, a começar por Oliveira Viana, que neste contraste encontrava a explicação de nossos equívocos e desacertos. Na verdade, porém, o primeiro a fazer tal reparo foi o próprio Rui Barbosa, a quem tantos acusam de ideólogo, que o poderá ter sido em alguns momentos de sua existência, mas que não foi no que tange ao problema do federalismo.

Tendo sido ele um dos mais ardorosos defensores da adoção do sistema federal em terras brasileiras, apercebeu-se logo dos perigos que cercavam a orientação que vinha sendo dada ao problema, até o ponto de reduzir-se a União a uma situação de miséria econômica e de impotência política. Alarmado com o processo desintegrador, que chegara a explodir em manifestações separatistas, em todos os quadrantes do País, (3) Rui Barbosa já exclamara desolado: “Ontem, de federação não tínhamos nada. Hoje não há federação, que nos baste”. (4)

Erram, por conseguinte, aqueles que, sem maior conhecimento de causa, atribuem ao mestre baiano a responsabilidade de nos ter brindado uma cópia servil do regime norte-americano, lançando o País em uma série interminável de conflitos intestinos, com quebra da política unitária do Império, a tal ponto que, extintos os tradicionais partidos nacionais, surgiram apenas agremiações políticas regionais, como oligarquias encasteladas nos feudos dos Estados, a coberto do controle ou da interferência do Governo Nacional, que, consoante a experiência do Poder Moderador, houvera sido antes penhor de tranquilidade e de garantias individuais do que de choques desintegradores.

3. Com o crescente desenvolvimento do País, e a natural projeção dos índices demográficos, era natural que, paulatinamente, se fizesse sentir a necessidade de uma força mais poderosa no centro da vida da República, contrabalançando os excessos regionalistas. Aliás, foram os Estados dotados de mais alto desenvolvimento econômico-financeiro ou cultural os primeiros a sentir a necessidade de maiores laços unitários, percebendo os equívocos de quaisquer tendências separatistas, cuja consequência imediata, para empregarmos terminologia contemporânea, seria destruir as vantagens recíprocas, para grandes e pequenos, de um “mercado comum brasileiro”.

É evidente que, dadas as características especiais do federalismo da primeira República, os “grandes problemas” de então foram postos no plano puramente político, sendo “punctum pruriens” de todo o nosso drama político o problemas das relações entre a União e os Estados, ou, mais precisamente, a questão incandescente da intervenção do poder federal na órbita autônoma dos poderes locais. (5)

“Estado de sítio” e “intervenção federal”, eis os dois grandes temas, os dois pólos em torno dos quais se descreve a elipse histórica da primeira República em matéria de Direito público constitucional…

É claro que, fixados assim os dados do problema, não sobrava uma posição de relevo para as entidades municipais, absorvidas pela força dos Estados.

Embora nos viesse da época colonial e até mesmo do segundo Reinado certa tendência municipalista, produto mais de fatores geográficos e demográficos do que de uma viva consciência dos valores de autogoverno; muito embora as distâncias imensas abrissem claros naturalmente propícios ao surto de organizações autônomas locais, os constituintes de 1891, até certo ponto, ignoraram os Municípios. Nesse passo, seguiram eles de perto as diretrizes do federalismo ianque, pois é sabido que os  Municípios nem sequer são mencionados na Constituição de Filadélfia, cabendo aos Estados dispor livremente sobre a estrutura e o regime jurídico-político das comunidades locais. Em confronto, porém, com o federalismo argentino, que se limitou a reproduzir o do norte do continente, mesmo em 1891 avançamos um pouco mais no sentido do reconhecimento “constitucional” das entidades municipais.

4. Se analisarmos, mesmo perfunctoriamente, os textos constitucionais que têm assinalado os momentos culminantes de nossa história republicana, fácil será perceber que, no tocante à significação do Município, a nossa evolução veio se operando no sentido da transferência progressiva dos problemas municipalistas, do plano puramente administrativo para um plano visual mais amplo de natureza política, tomado este termo em toda a sua acepção. Dir-se-ia que, desde a Constituição de 1891 até à de 1946, verifica-se um processo de "politização" crescente do Município.

Lembram-se todos das divergências havidas entre ilustres mestres, antes da reforma constitucional de 1926, sobre se a autonomia municipal devia ou não ser considerada "princípio constitucional”.

De início, predominou, como já se disse, a tendência para polarizar a Federação no sentido dos Estados, a cuja mercê ficariam as entidades municipais. Barbalho apoda mesmo de "excrescência" a cláusula do art. 68 da Constituição Federal, por conter regras concernentes à vida dos Municípios, muito embora aquele exímio comentarista reconhecesse caber as constituições dos Estados assegurar plenamente as franquias locais, consagrando “a liberdade dos Municípios se constituírem, fazendo cada um deles mesmo sua lei orgânica…” (6)

Teórico por excelência do “estadualismo” entre nós foi o ilustre Ministro Castro Nunes em sua preciosa monografia O Estado Federado e sua Organização Municipal. Nesse trabalho, considera ele o municipalismo “processo normal de descentralização das velhas monarquias unitárias”, asseverando que “a autonomia municipal teve na formação da Federação brasileira um papel secundário, à margem da corrente central constituída pelas aspirações provinciais que se ligam ao Ato Adicional…” (7)

Na realidade, a Constituição de 1891 sofreu, nesse passo, a poderosa influência da Escola Positivista, que, pela palavra de Lauro Sodré, considerava "exorbitância do poder federal” qualquer preceito garantidor da autonomia do município. Prevalecendo a opinião dos adeptos da “ditadura científica", acabou-se por dar ao art. 68 uma redação de discutível conteúdo.

Contra essa vitória do “estadualismo” sobre o “municipalismo” não tardou a reação, que veio se avolumando, em marcos sucessivos, como a reforma constitucional de 1926 (8) e a constituição de 1934 (9), para atingir seu ponto culminante na atual Carta Magna.

II

O Município como categoria do Estado Federal

5. A autonomia municipal, hoje em dia, não pode mais ser considerada uma simples regra interna de descentralização administrativa de cada Estado, devendo-se notar que, se o Município recebe do Estado federado a sua personalidade jurídica, a configuração e os limites desta se encontram, entretanto, traçados na própria Constituição federal. Estamos, aliás, em face de textos legais à espera de uma construção doutrinária, que não poderemos buscar, por sua especificidade, no Direito peregrino. 

Até 1934, coube aos Estados criar municípios e traçar-lhes, a seu alvedrio, os limites de sua competência. Depois de 1934, e, notadamente depois de 1946, continuam os Estados com a atribuição privativa de fixar as condições de criação dos Município, mas, a personalidade que lhes é conferida já se acha prefixada no texto constitucional da Federação, de sorte que a legislação estadual só tem um caráter de complementaridade, como veremos em estudo especial sobre este assunto. (10)

6. É com a Constituição de 1934 que o sistema constitucional brasileiro começa a apresentar um tipo de organização federativa de Estado com características próprias, distinto do modelo norte-americano que seduzira os constituintes de 91. Naquela Carta, surge o Município com uma base asseguradora de autonomia, tanto no plano econômico-financeiro, como no plano político-administrativo. Cedia, assim, o estadualismo, — que pretendia polarizar as forças políticas no sentido das antigas províncias —, à pressão da realidade brasileira mais autêntica, formada pelos núcleos fundamentais que são os Municípios.

Com o advento do Estado Novo, a situação sofreu mudança sensível, consagrada que foi a livre nomeação de todos os prefeitos pelo governador do Estado. Isso nos textos legais, porque, na prática, a alteração atingiu as formas mais graves de centralização administrativa.  É sabido que a Carta de 1937 jamais foi cumprida na parte relativa à organização dos Estados e Municípios, os quais viveram efetivamente sob o regime do Decreto-lei nº 1.202, de 8 de abril de 1939, e outras leis institucionais da intervenção federal permanente. (11)

A Constituinte de 1946 vem retomar e desenvolver a orientação interrompida com o golpe de Estado e, — é necessário acentuar aos que vivem a repetir teses abstratas do federalismo ianque, como se este representasse paradigma dessa forma de Estado —, já então se fixam os quadros da Federação brasileira com uma fisionomia muito sua, na qual bem ou mal se refletem as lições de nossa própria experiência política.

Objetivo conscientemente posto e visado por nossos constituintes foi o de uma Federação integrada de três elementos originais, cada qual com seu círculo de competências privativas, sem prejuízo de círculos de competência concorrente. União, Estado e Município receberam, nas matrizes mesmas da Constituição de 18 de setembro, a prefiguração de suas personalidade e capacidades jurídicas, apresentando-se como aspectos ou dimensões do Estado brasileiro, uno na expressão de sua soberania, mas tridimensional quanto à distribuição e ao exercício do Poder na tarefa multifária de realizar o bem comum. É por isso que já dissemos alhures que, em contraposição ao ianque, que é bidimensional (União e Estados), o nosso federalismo é tridimensional (União, Estados e Municípios).

A discriminação dessas três esferas de competência obedeceu, evidentemente, a um critério, ou melhor, a um sistema de critérios. No delicado plano distintivo das atribuições privativas, seguiu-se, em linhas gerais, esta regra: à União reservam-se os problemas que interessam indistintamente a todos os brasileiros (daí a unidade da legislação civil, penal, comercial, processual, etc.; a competência para fixar as diretrizes gerais da política educacional, sanitária, etc.; a defesa do território, a representação internacional, etc.); aos Estados cabem as questões atinentes à sua administração própria, para execução e aplicação in concreto do que in genere houver a União fixado para todos, em obediência aos princípios do regime vigente; aos Municípios atribui-se o cuidado de seus peculiares interesses, o que implica em autonomia de iniciativa na esfera do que lhe é própria, e em competência complementar e supletiva em tudo que, por sua natureza, seja comum aos membros dos demais Municípios e se enquadre, por sua generalidade, no âmbito da competência federal ou estadual.

7. É claro que nem sempre o legislador se mantém fiel a essa distribuição simétrica e escalonada, mesmo porque os fatos sociais se interpelam e se complicam, sendo difícil distingui-los rigorosa e rigidamente em seus momentos.

Lembramos aqui, de passagem, que não nos parece exato afirmar-se que é a União que se reserva uma soma de poderes e “delega” outros aos Estados; nem, por outro lado, se pode sustentar que são “os Estados contratantes do pacto federal” que se reservam os poderes não atribuído à União. (12) Ambas essas teses, sustentadas por “centralistas” e “estadualistas”, afiguram-se-nos inaceitáveis: a Assembleia Constituinte, que é expressão do todo nacional, distribuiu o exercício do poder estatal entre os Municípios, os Estados e a União, não sendo esta a expressão única, mas apenas uma das expressões do ordenamento interno do Estado brasileiro, apesar de sua eminência. 

Esta observação a fazemos para que se não tire do artigo 18, § 1º da Constituição, — que reserva aos Estados todos os poderes que, implícita ou explicitamente, nela não lhes sejam vedados, — a conclusão de que há no Brasil efetivamente um pacto federalista no qual os Estados figurariam como altas partes contratantes. Na realidade o citado dispositivo não pode, nem deve ser interpretado isoladamente, mas no conjunto de nosso sistema constitucional que consagra, claramente, a preponderância da União, inclusive porque, como já foi notado, a outorga de poderes residuais só é formalmente favorável aos Estados, tal a soma de atribuições conferidas ao Governo central. (13)

8. Os Municípios não recebem mais dos Estados-membros da Federação, como poderia parecer em virtude de usos inveterados de nosso meio político, as linhas demarcatórias de suas faculdades privativas de agir com autonomia, ou seja, para atender a fins próprios com meios próprios.

É a Constituição a fonte primordial, à cuja luz devem ser examinados os textos, não só das leis estaduais de organização municipal, como também os preceitos das próprias Constituições promulgadas em cada uma das unidades federadas.

Uma vez ordenada constitucionalmente a Nação, ficam potencialmente ordenados os Estados e os Municípios, cujas leis constitucionais ou orgânicas não fazem senão tornar explícitos ou atuais, com toda a riqueza de suas particularidades, os direitos e deveres peculiares a cada expressão do poder popular. Tanto assim é que, quando a “atualização” das forças hauridas na matriz constitucional se processa de maneira discrepante das normas fundamentais, reage o Poder Federal negando-lhe “constitucionalidade”, o que quer dizer, vigência ou validade jurídica primordial.

É dentro desses pressupostos que devemos, necessariamente, interpretar as leis locais de estruturação política e, de maneira especial as que redistribuem e determinam competências.

9. Não há porém um tipo ou categoria jurídica universal de “federalismo”, com notas conceituais precisas, constantes e preestabelecidas, de maneira que nos seja lícito afirmar a priori que à União ou aos Estados deverá sempre caber isto ou aquilo: esse é um problema de Direito Positivo, variável de País para País, e em uma mesma Nação, de época para época.

No agitado período de nossa vida republicana o pêndulo do Poder já tem oscilado irregularmente, ora segundo um ritmo de predomínio absoluto da União, ora no sentido de mais larga esfera de atividades livres para os Estados, mas, analisada a totalidade da experiência histórica, fácil se percebe que também no Brasil ocorre o fenômeno, comum a vários outros Estados Federais, do deslocamento dos poderes em benefício da União, que, quanto mais concentra atribuições, mais sente necessidade de atuar através não só dos Estados-membros, mas dos próprios Municípios, tomando contato direto com as entidades locais. Quando não surgem organismos novos, e poderosos de caráter regional, à margem do sistema federativo, e com reflexos inevitáveis na estrutura estatal, como, por exemplo, os constituídos para resolver os problemas da Amazônia, do Nordeste, do Rio Doce, do São Francisco, etc.; com tais entidades complexas é todo um novo federalismo de base geoeconômica que vai brotando dos fatos, superpondo-se, praticamente, aos Estados-membros, cujos Municípios se correlacionam segundo linhas de interesse que não coincidem com as fronteiras interestaduais.

Os que pregam a necessidade de uma revisão territorial do País segundo critérios puramente técnicos e racionais, à luz de dados geoeconômicos objetivos, com abstração das forças histórico-culturais correspondentes aos “regionalismos estaduais”, talvez olhem com esperança para os organismos “super-regionais” que o Poder Federal vai traçando sobre o mapa político-administrativo da República… Em sentido inverso, mas com o mesmo resultado, nota-se, aliás, uma tendência, no sentido de se comporem os Municípios em “autarquias regionais” ou através de consórcios que poderão influir decisivamente na fisionomia do Estado brasileiro, multiplicando-lhe os meios de ação.

Volvamos, porém, ao plano das estruturas já juridicamente enquadradas como “componentes constitucionais” da Federação.

10. Examinando-se o texto da Constituição atual, podemos verificar que a Assembleia Constituinte, como detentora do feixe dos poderes nacionais, distribuiu o exercício da autoridade política de uma forma complexa, que não caberia aqui pormenorizar, traçando três círculos distintos de competência privativa, sem prejuízo de círculos de competência concorrente.

Como observa Santi Romano, em sua clássica monografia L’ordinamento giuridico, em um sistema federativo há vários ordenamentos jurídicos coexistentes, cada qual com o seu centro de interesses e de atributividades normativas, de tal maneira que a distribuição de competências, que se opere em um deles, torna-se “irrelevante” para os demais: "in generale, gli effetti o l'efficacia, che dir si voglia, di un ordinamento si esplica nell'ambito che gli é proprio e si arresta invece davanti all'ambito dominato da un diverso ordinamento”. (14)

Igual é a conclusão do insigne Hans Kelsen, embora partidário de um absoluto monismo jurídico, absolutamente infenso à teoria pluralista de Santi Romano: “Sometimes”, assevera o mestre da Escola de Viena, the central administrative authorities are competent to supervise the activity of the autonomous bodies; they may annul norms issued by autonomous organs which violate central statutes issued by the legislative organ of the State, but they may not replace such norms by norms created by themselves”. (15)

Dessarte, os "círculos de competência privativa" da União, dos Estados e dos Municípios se ordenam "normativamente" no todo jurídico nacional.

O Município, embora possa ser extinto pelo Estado, a quem cabe privativamente decidir sobre a sobrevivência, os desmembramentos ou as anexações das Comunas, — nem por isso perde a sua dimensão normativa de natureza constitucional, mesmo porque não se conceberia Estado sem Municípios até e enquanto vigente a Constituição federal. É esta que oferece ao Estado o modelo de sua estrutura interna, facultando-lhe recortar na tela de seu território quantas imagens municipais julgar imprescindíveis ou convenientes à vida administrativa. (16)

Por conseguinte, no plano da normatividade constitucional, União, Estados e Municípios revelam-se categorias juridico-politicas coexistentes e inamovíveis: desmembrem-se ou suprimam-se Estados e Municípios no plano das vicissitudes empíricas, que aquelas três categorias subsistirão como peças inamovíveis de nosso Estado Federal.

Aliás, o argumento invocado contra a dimensão constitucional das entidades municipais, por ser suscetível cada uma delas (mas não todas...) de ser modificada e até suprimida pelo Estado, não se justifica no plano dogmático-jurídico. Bastará haver um só Município para que se lhe não possa negar participação no organismo federal. O ponto de vista do jurista é o da vigência das leis, e não o da sua hipotética revogação. A possibilidade de virem a ser juridicamente suprimidos todos os Municípios, pela adoção constitucional de outras formas de organização da vida local, não pode, evidentemente, ser excluída a priori, máxime tendo em conta que tal reforma poderia ser objeto de deliberação do Congresso Nacional (v. Constituição, art. 217, § 6º).

Enquanto, porém, permanecerem em vigor os dispositivos constitucionais, não há como adentrar pelos domínios das conjecturas. Ao intérprete cabe indagar do sentido da vigência atual das normas, para inferir e prever as suas consequências na vida social, pois, se fôssemos elaborar os conceitos dogmático-jurídicos à luz de abstratas “possibilidades normativas”, — usurpando a perspectiva dominante do legislador, ficaria comprometido o maior bem do Direito, que reside na objetividade e na certeza.

11. Princípios da Constituição ou princípios constitucionais por excelência são os sete discriminados no item VII do art. 7º, sem prejuízo de outros da essência do regime. Entre aqueles está a “autonomia municipal”.

A autonomia municipal ascende, dessarte, no Estatuto básico de 1946, como já no de 1934, à dignidade máxima de princípio constitucional, armado, aliás, de base econômica própria em virtude da garantia representada pela capacidade tributária expressa. Limitou-se, pois, o poder de auto-organização dos Estados, que não poderão, a seu talante, restringir a autonomia dos Municípios a ponto de torná-los meros executores de ordens hierárquicas. Pode-se dizer que, hoje em dia, o ordenamento jurídico municipal não resulta apenas dos Estados, mas deriva da fonte nacional, dependendo dos Estados quanto à verificação da conveniência política do reconhecimento de novos municípios ou da extinção de entidades insuficientes.

O art. 28 da Constituição federal torna, aliás, patente o caráter de derivação imediata e originária do poder municipal, quando lhe assegura autonomia pela eleição do prefeito e dos vereadores, pela “administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse”, garantindo, ainda os arts. 29 e 15, §§ 2º e 4º, competência tributária própria. No julgamento da Representação do Governo de São Paulo sobre a Constituição paulista, reconheceu o Supremo Tribunal que é insuscetível de restrição pelo Estado “a capacidade de organização dos serviços públicos locais, da decretação dos tributos de sua competência, de aplicação das suas rendas”. (17)

O Município, por conseguinte, não pode sofrer restrições estaduais no que se refere à sua autonomia, nem esta se encontra mais, como no regime da Constituição de 1891 (antes de revista), à mercê das leis estaduais, “que definissem o que dentro do Município constitui interesse deste com a exclusão do interêsse do Estado”, consoante exegese firmada em vários acórdãos do Supremo Tribunal Federal, especialmente quanto à possibilidade de nomeação dos Chefes dos Executivos municipais. (18)

A nossa organização estatal apresenta, pelo exposto, uma fisionomia peculiar, que se distingue nitidamente da de tipo norte-ameri cano. A Federação ianque foi o resultado de um acordo entre Estados, marcando um crescendo de integração rumo à unidade política. Entre nós, ao contrário, justamente porque a unidade política já a possuíamos, o federalismo não foi e não pode ser senão um processo técnico próprio de ordenação político-administrativa. Se lá, na América do Norte, o federalismo tem dois termos (a União e os Estados), possuindo os Municípios uma existência mais consagrada pela experiência histórica e costumeira do que por normas legais (“because it is a matter”, diz Bryce, “regulated not by federal law, but by the several States and Territories, each of which establishes such local authorities, rural and urban, as the people of the State or Territory desires, and invests them with the requisite powers”), (19) aqui no Brasil é tridimensional nas matrizes mesmas da Constituição vigente, não sendo possível falar-se em hierarquia de leis federais, estaduais e municipais a não ser fora da esfera das respectivas competências privativas.

Como bem pondera Pontes de Miranda, a Constituição de 1946, “sem ir até onde deveria ter ido, restaurou a autonomia municipal e deu nova oportunidade a intensa política municipalista”.

O ilustre jurisconsulto acrescenta que “os Municípios não podem ser privados, ainda pela Constituição estadual, da competência para organizar os seus serviços. Seria reduzir a autonomia municipal à simples autonomia administrativa, só lhes deixar o cumprimento de normas que a Constituição estadual ou as leis estaduais ordinárias Ihes ditassem. O Município é entidade interestatal rígida como o Estado-membro”. (20)

Alguns mestres chegam a afirmar, mas sem razão, que, sendo a autonomia municipal um princípio constitucional, as chamadas Leis Orgânicas dos Municípios representariam a sobrevivência de hábitos de intervenção adquiridos por força de mandamentos legais diversos e já superados, não se podendo negar aos Municípios a faculdade de auto-constituição, satisfeitas certas condições previstas na lei estadual.

Se a autonomia municipal não é da essência do federalismo, em geral, tornou-se, todavia, um elemento essencial ao federalismo brasileiro, nesse ponto inconfundível com o norte-americano ou o argentino, este último bem caracterizado nesta síntese de Bielsa: “El régimen municipal argentino es propio de un Estado de sistema federal, en el cual se opera una descentralización política, administrativa y fiscal por la institución de las provincias (verdaderos Estados interiores o particolares como les llaman algunas veces, v. gr., el Código Civil). La descentralización municipal es solamente administrativa y fiscal”. (21)

12. A conceituação do Município brasileiro como uma unidade político-administrativa (alma da política nacional, a célula da democracia, como diz Carlos Maximiliano) (22) torna-o inconfundível com sistemas alienígenas, como foi posto em evidência pelo Senador Vivacqua justificando emendas relativas às imunidades dos vereadores: “Instituímos um novo municipalismo, fortalecido sob o aspecto democrático e financeiro, que não há de ser interpretado à luz de precedentes fundados em nossa infeliz tradição municipalista, e tampouco examinado à sombra de doutrinas exóticas. Os constituintes de 1946 acolheram as reivindicações da consciência nacional sobre as franquias e fortalecimento do governo local. Esse é um dos sentidos marcantes do pensamento da transformação institucional operada com a Constituição de 1946”; e, mais adiante: “Tomando as palavras do eminente mestre Carvalho Mourão, a respeito da Constituição de 1934, poder se-ia dizer, como ele, que a Constituição de 1946 fez do Município um dos membros da trilogia: União, Estados e Municípios. Isto constitui uma originalidade. É patente que foi abandonado, nesse ponto, inteiramente, o modelo norte-americano. O Município é, consequentemente, uma das três subdivisões das funções da soberania em nosso Estado composto”.

Resta ver em que medida e de que forma é de acolher-se a decantada trilogia.

III

Dos critérios jurídicos distintos das unidades federadas

13. A doutrina tradicional do federalismo não toma em consideração senão dois pólos (a União e o Estado-membro) para a edificação do Estado Federal, variando, de País para País e de época para época, o âmbito das respectivas competências privativas. É, em suma, um federalismo bidimensional.

No caso especial dos Estados Unidos da América do Norte, essa “bidimensionalidade”, durante cerca de século e meio, consoante os propósitos de seus instituidores, foi entendida em termos de igualdade entre a União e os Estados (dual-federalism) de tal sorte que o Governo geral e os Governos regionais se concebiam coordenados e independentes em suas respectivas esferas, sem o reconhecimento explícito da supremacia da União. (23)

É sabido, inclusive através de lúcidas monografias publicadas no Brasil, que o chamado “new federalism” se caracteriza exatamente pela ascensão crescente dos poderes federais, que abraçam, cada vez mais, a totalidade da Nação norte-americana, convertendo em problema geral uma infinidade de “questões locais”, de que antes os Estados se mostravam tão ciosos, garantidos como estavam pela orientação dominante na Suprema Corte. (24)

Nas últimas décadas, é certo, foram sendo paulatinamente rompidas as pretensões de igualdade, às vezes jactanciosamente postuladas pelos Governos regionais, como decorrência de um complexo de fatores de ordem militar, técnica, econômica, etc. (o que se traduziu, especialmente, no domínio avassalador da União sobre os problemas da produção e da circulação das riquezas, através da tese plástica de uma possível repercussão indireta do “comércio local” sobre o comércio dos demais Estados; na questão dos auxílios ou ajudas, federal grants in-aid, de que os Estados se revelaram cada vez mais precisados, aproveitando-se o Governo geral para condicioná-los à satisfação de um programa nacional de ação; nos planos globais de recuperação e desenvolvimento, etc.), mas essa posição preeminente do Poder central não deve levar ao equívoco de pensar que o federalismo norte-americano tenha deixado de ser dual, embora sem paridade: por mais restritos que possam ser as suas órbitas de competências privativas, os Estados-membros ainda conservam grande soma de poderes não contrasteados por Washington. Ao bi-federalismo igualitário sucede um outro, mais aderente às conjunturas e contingências do mundo econômico-político contemporâneo. Mas federalismo bidimensional sempre, no qual o Município não figura como categoria autônoma indeformável. (25)

O que ocorre, em suma, é uma alteração no espírito do federalismo ianque, notadamente após 1937. “Encarando o federalismo como conceito dinâmico e não estático e as linhas divisórias das atividades da União e dos Estados como essencialmente móveis e flexíveis, passa-se a uma nova concepção, conhecida como Federalismo Cooperativista”. (26)

Alteração, como se vê, no modo de apreciar-se a funcionalidade entre a União e os Estados, segundo uma preocupação pragmática de natureza operacional, figurando em plano de menor relevo as indagações sobre os possíveis critérios jurídicos indispensáveis à caracterização de um “elemento componente do Estado Federal”.

14. Se, no entanto, desenvolve-se o federalismo norte-americano sem referência expressa às entidades locais, seria engano olvidar o que estas representam como elementos fundamentais na organização política da grande Nação ianque.

Note-se que nos referimos de maneira genérica às “comunidades locais”, pois nos Estados Unidos da América do Norte não vingou a preocupação intelectualista de se impor em todo o território um modelo único de organização municipal, preferindo-se a diversificação resultante de experiências próprias, em função de múltiplas circunstâncias geoeconômicas e históricas, sem qualquer apego a padrões apriorísticos e simétricos. A desnecessidade de modelo legal tornou-se possível em virtude da herança do self government britânico, pois a tradição de vida local autônoma, posta sempre em relevo pelos tratadistas, desde Alexis de Tocqueville e James Bryce até André Siegfried, (27) veio constituindo os órgãos de administração urbana ou rural segundo critérios de ordem prática, em estruturas plásticamente adaptáveis às exigências do meio social.

Se é certo, como observa Aliomar Baleeiro, que as entidades locais norte-americanas (towns, countries, etc.) “recebem o poder fiscal por delegação das Constituições e leis dos Estados, dos quais são criaturas ou instrumentalidade”, tal delegação é, todavia, subordinada às exigências tradicionais do self government, dando lugar, às vezes, a uma intrincada distribuição de competências tributárias. (28)

Poder-se-ia dizer que, analisado o sistema norte-americano apenas à luz da Constituição Federal, não haveria senão dois termos (a União e os Estados), mas, se completarmos o quadro com os elementos institucionais de caráter costumeiro, mais justo seria admitir, embora sem os ouropéis de nosso federalismo teórico, a existência de um terceiro fator atuante na vida política e social da República do Norte.

15. É, porém, nas nações europeias, de um e do outro lado da “cortina de ferro”, que os estudos dogmático-jurídicos do federalismo suscitam problemas doutrinários de grande alcance, a começar pela determinação rigorosa dos critérios distintivos de um Estado Federal.

A questão, à primeira vista de puro valor acadêmico, deve ser equacionada, não só em virtude do aparecimento, especialmente após a última guerra universal, de uma série de formas mistas ou híbridas de Estado, como porque, no caso particular do Direito Constitucional brasileiro, a pretensão de erigir o Município em “categoria do Estado Federal” envolve delicados problemas de ordem doutrinária.

Vários critérios têm sido aventados pelos politicólogos ou pelos constitucionalistas (a matéria é, na realidade, mais de Teoria do Estado do que de Direito Público, que a aprecia em função de determinado ordenamento jurídico), para se caracterizar uma “entidade componente do Estado Federal”.

A pergunta, tendo em vista os objetivos deste trabalho, pode ser assim formulada: “como distinguir-se a entidade autônoma, configurável em um Estado unitário descentralizado, da autonomia peculiar a uma entidade componente do Estado Federal?”

A simples colocação do problema demonstra que, na situação atual dos estudos, deve ser considerada definitivamente superada a teoria que invocava dados empíricos de descentralização ou “desconcentração”, pois a experiência atual demonstra que, em certos Estados unitários, vicejam circunscrições com mais extensa autonomia administrativa, e mesmo política, do que a atribuída a determinados Estados-membros de uma Federação.

Nesta matéria, aliás, assiste razão a C. Durand quando observa que os critérios estritamente jurídicos se revelam problemáticos, não havendo, às vezes, entre as diferentes formas de Estado senão diversidade de grau. (29) Resultará, daí, então, a renúncia a um ou mais critérios distintivos, para considerar-se, pragmaticamente, o federalismo “uma aplicação particular da teoria da descentralização”? (30)

Imensas são, sem dúvida, as dificuldades a vencer quando se busca o traço identificador de uma “unidade federada”, tão férteis têm sido, nas últimas décadas, as combinações arquitetadas pelos legisladores constituintes, mas, se levarmos em conta a natural mobilidade da experiência política, talvez se possam apontar, mesmo que seja a título provisório, alguns resultados positivos da pesquisa, considerando-se esta uma questão sujeita aos impactos contínuos dos fatos e dos valores intercorrentes, como se dá com todos os aspectos da chamada “crise do Estado”.

Feita essa ressalva, eis quais são os critérios que, como referências ideais, isolada ou englobadamente, deveriam estar presentes em um organismo federal:

  1. A faculdade de auto-organização ou o poder institucional, em virtude do qual um ente público pode constituir os próprios órgãos superiores por atribuição originária, disciplinando os respectivos serviços dentro de uma esfera privativa de competência, a coberto da interferência ou da contrasteação de qualquer órgão superior, exceção feita para o controle judicial de constitucionalidade, a que estão sujeitas todas as expressões do Estado;

  2. A faculdade de participar na formação das decisões estatais, ou, mais precisamente, a possibilidade de cooperar, positiva e diretamente, na elaboração das leis comuns a todo o território nacional, sobretudo no que tange à revisão do Estatuto básico do País;

  3. Existência de uma órbita originária de atribuições, exercida pela entidade autônoma como direito próprio, constitucionalmente assegurado, e, como tal, insuscetível de ser violado não só pelo governo, como também pelo Legislador federal ordinário.

É claro que, dentro desse esquema geral, entreabre-se um leque de possibilidades, sob qualquer dos ângulos em que se focalize a matéria. Assim é, por exemplo, que poderá uma unidade federada, tal seja o sistema constitucional, em vigor, organizar livremente os seus órgãos fundamentais, ou, mais precisamente, os seus Poderes, adotando o regime parlamentar, o presidencial ou formas mistas, ou então, como acontece no Brasil, limitar-se-á a atualizar o modelo consagrado na Constituição Federal, reproduzindo, mutatis mutandis, as estruturas da União. (31)

Por outro lado, a participação na feitura das leis, ou na reforma dos preceitos constitucionais pode apresentar-se sob várias modalidades: representação paritária dos Estados-membros no Senado; aprovação das revisões constitucionais pelas Assembleia provinciais; subordinação da vigência de certas leis à prévia realização de referendo ou plebiscito etc. nas circunscrições interessadas; constituição parcial ou total do Legislativo federal por eleição indireta, através de Assembleias ou de Colégios eleitorais regionais, etc.

Finalmente, o que o Estatuto básico pode conferir originariamente ao membro de uma Federação é sumamente variável de uma para outra Nação: o que importa, porém, — e talvez neste ponto resida o núcleo essencial da ideia federativa — é que, por mais restrita que seja a esfera de competência privativamente outorgada a um ente federado, terá ela necessariamente as características de ser

  1. indeformável por obra do legislador ordinário; e

  2. amparada graças a remédio previstos no próprio texto constitucional. (32)

É o que decorre de uma verdade que chega a ter força de tautologia: o que a constituição dá, só uma constituição pode subtrair.

Dessarte, se num Estado unitário surgirem entidades dotadas daqueles requisitos estará sofrendo enxerto ou deformação federalista. (33)

16. Assentes os princípios acima, e à luz do exposto sobre a estrutura do Município brasileiro, facilmente se conclui que dos três sinais ou marcas principais do federalismo, a nossa Comuna só possui o último, o que quer dizer, o mínimo de federalismo juridicamente possível, pois carece de poder institucional, no sentido específico do termo, nem participa da formação legislativa do País por título próprio.

Já é muito, porém, ter galgado a escala do federalismo, embora em seu grau inicial, pois tal posição assegura ao Município um campo de atribuições juridicamente intocável.

Se concebermos, como tudo aconselha a fazê-lo, o Estado Federal como uma construção escalonada e gradativa, na qual os ordenamentos jurídicos fundamentais (União, Estados e Municípios) não se justapõem num mesmo plano, mas se ordenam em planos de relevância crescente, a partir dos entes locais até os regionais, e destes até a União, compreenderemos melhor o sentido de participação federalista consubstanciado, em favor das Comunas, por nosso Direito Constitucional: trata-se de um momento autônomo, com validade própria, mas inserido num sistema que não exclui, mas antes exige uma gradação hierárquica na positividade jurídica da ideia diretora do Estado. (34)

IV

Legitimidade das Leis Orgânicas dos Municípios e sua destinação jurídica

17. No regime da Constituição de 1891, já revista, A. de Sampaio Dória, invocando o art. 34, item 34, que reservara à União o poder de “decretar as leis orgânicas para a execução completa da constituição”, arguira de inconstitucionalidade as leis orgânicas municipais então promulgadas pelos Estados, por entender que, sendo a autonomia dos Municípios um dos princípios máximos do regime, só ao Congresso Nacional caberia “decretar lei orgânica sobre a execução constitucional da autonomia municipal”. (35) 

Na vigência da atual Constituição e especialmente em face do § 1º do art. 18, não cremos que ainda possam subsistir dúvidas quanto à competência dos Estados para decretar leis gerais sobre a organização municipal, sendo esta, aliás, a tese dominante também na chamada República Velha.

O que falece, entretanto, ao Estado é competência para fixar os limites dos poderes locais com prejuízo da autonomia dos Municípios, envolvendo-se em assuntos de seu peculiar interesse.

Se a Lei Orgânica dos Municípios de São Paulo (Lei nº 1, de 18 de setembro de 1947) vedasse, por exemplo, aos Municípios a livre disposição de seus bens patrimoniais, quer a título oneroso, quer a título gratuito, tal dispositivo seria evidentemente inconstitucional, por ferir um dos elementos essenciais à autonomia municipal. O Estado pode, quando muito, estabelecer condições para aqueles atos, e efetivamente as estabelece, mas não os pode impedir, criando embaraços à realização de fins locais que, muitas vezes, só se atingem mediante doação ou venda de bens imóveis, transferidos, e. g., com o encargo de serem destinados a obras ou serviços indispensáveis ao progresso cultural do Município.

Os limites que os Estados podem traçar à autonomia dos Municípios não dizem respeito aos negócios próprios e peculiares destes, mas decorrem antes da necessidade de se comporem as unidades locais em um todo orgânico e harmônico, suprindo-se as deficiências das partes pela colaboração e a assistência técnica do todo. 

Cabe ao Estado assegurar aos Municípios o seu desenvolvimento como células integrantes de um mesmo organismo, cujos fins unitários implicam, como é lógico, em uma delimitação recíproca de faculdades.

Ninguém contestará, por maior que seja o seu apego ao municipalismo, que o que era ontem matéria de interesse local hoje adquire ressonância de ordem geral, não raro ultrapassando os limites de cada Estado, sendo impossível, como diz o Prof. Goodnow, determinar arbitrariamente o ponto em que o interesse do Estado termina e o interesse municipal começa. (36) 

A Lei Orgânica encontra, pois, sua razão de ser no “imperativo de coexistência e desenvolvimento harmônicos dos Municípios”, cujas deficiências devem ser supridas, e decorre ainda da necessidade de serem fixados os requisitos mínimos do “reconhecimento legal” de autonomia aos novos centros urbanos ou rurais, que hajam atingido a maturidade municipalista, segundo certos critérios legais correspondentes a um sistema mínimo de condições econômicas, demográficas, financeiras, geográficas, históricas, etc.

É um problema deveras complexo esse que surge do inevitável centrifugismo das entidades locais, ciosas de sua autonomia, em contraste com o centripetismo da ordenação estadual, que, a todo instante, tende a atrair para si serviços da órbita municipal.

Nos Estados Unidos, onde a ausência de textos solenes consagrando a autonomia municipal não tem impedido o seu reconhecimento e progresso, busca-se uma linha de equilíbrio, de maneira que as exigências da comunidade estatal e das coletividades locais se componham, máxime porque a interferência do Poder central se justifica em muitos casos, ante as próprias deficiências locais de elementos técnico-administrativos. (37) 

Analisando os governos locais na América do Norte, lembra Charles A. Beard as quatro soluções básicas apontadas para o intrincado problema da legislação estadual concernente à organização político-administrativa dos Municípios:

  1. ou se reconhecem apenas leis de caráter geral;

  2. ou se admitem leis especiais, desde que aprovadas pelos Municípios a que se destinam;

  3. ou então se aconselham normas fixadoras de vários esquemas de organização, assegurada aos Municípios liberdade de escolha;

  4. ou finalmente, se sustenta “the home rule”, ou seja, a plena autonomia do Município na sua organização política e não apenas no exercício dos poderes de órgãos genericamente prefixados por lei estadual (Freeholder’s Charter). (38) 

Vigora lá, por uma orientação política infensa, como já dissemos, a esquemas traçados a priori.

18. Entre nós, ao contrário, por tradição casuística, ou por força de inércia, mas em contraste com determinações precisas de nossos preceitos constitucionais, temos sempre seguido a praxe de fazer leis orgânicas que descem até a minúcias de organização de serviços municipais, dispondo sobre a economia interna das Câmaras, disciplinando rigorosamente a função do Prefeito, etc.

Dir-se-á que tal é a solução aconselhável nesta época de transição, visto como a volta à ordem constitucional se operou a partir do âmbito federal para o estadual e deste para o municipal. Só o tempo, no entanto, dirá dos benefícios desses esquemas uniformes, não raro artificialmente aplicados a situações locais diversas.

De qualquer forma, a Lei Orgânica dos Municípios decorreu do poder institucional do Estado-membro, devendo ser entendida como lei complementar das Constituições estaduais. Representa, na realidade, a Carta dos direitos e dos deveres das entidades comunais.

Melhor fora que o legislador, ao invés de perder-se em enumerações casuísticas, tivesse procurado fixar algumas normas gerais concernentes às duas séries complementares de problemas que a autonomia municipal suscita: uma relativa à “administração própria, no que concerne ao seu peculiar interesse” (a que alude a Constituição Federal, art. 28, II, letras a e b); a outra no tocante às formas ou meios de cooperação intermunicipal, ou de participação dos Municípios nos serviços públicos do Estado.

Por outro lado, se a Carta Maior já preordena a organização política municipal, pela eleição do Prefeito e dos Vereadores, deixou em branco o problema das organizações distritais, ou, a possibilidade de se criarem circunscrições administrativas internas capazes de efetivar os serviços públicos na zona rural. O que ocorre, quando no Brasil se legisla sobre o Município, é ter-se presente apenas o centro urbano, com olvido da totalidade comunal em todas as suas expressões demográficas e econômico-sociais.

Por outro lado, em lugar de decretar taxativamente uma via a ser sempre seguida, devia o legislador estadual dar preferência a normas standards, oferecendo aos dirigentes locais a possibilidade de escolherem, dentre várias diretrizes abstratas, a que in concreto melhor lhes parecesse correspondente às necessidades do Município.

Nem sempre a simetria se harmoniza com a estética política.

V

Infraestrutura do federalismo brasileiro quanto à situação do Município

19. Até agora apreciamos o problema da “categorização federal” do Município brasileiro no plano dogmático-jurídico, e foi-nos possível assinalar o que nesse ponto se realizou de salutar progresso, mas agora é mister ligeira referência à infraestrutura que condiciona aqueles valores jurídicos.

Num confronto sereno entre a situação do Município antes e depois da Constituição de 1946, não se pode deixar de reconhecer que, também no plano prático, houve acentuado progresso no que tange à autonomia municipal, especialmente pelo fortalecimento de seu poder tributário.

Os saudosistas do municipalismo colonial costumam lembrar a época em que as comunidades locais se punham como forças vivas, entendendo-se com o poder central dos monarcas sem quaisquer intermediários, enquanto que, com o advento do Império e da República, veio se acentuando a interferência opressora das Províncias e dos Estados.  (39) 

Resta, porém, verificar até que ponto os raros exemplos de autonomia municipal geralmente invocados, como o de São Paulo de Piratininga, mais do que a autoconsciência dos problemas locais, não representavam mero reflexo da dispersão demográfica e da carência dos meios de comunicação: entre o Município colonial, que preenchia o claro deixado pela remota autoridade real, funcionando, dessarte, como “sucedâneo do Estado”, e o atual Município, entrosado organicamente no sistema federativo nacional, há uma diferença que só as coordenadas do tempo tornam compreensíveis. (40)

Acordes estão os autores em reconhecer que a transladação das estruturas jurídico-políticas do antigo Município luso obedeceu às injunções do meio americano, refletindo, como um espelho, as múltiplas condições da terra jovem, segundo o cunho aristocrático-rural ou democrático-mercantil dos dispersos núcleos populacionais. (41) Foi, de qualquer forma, uma imposição das circunstâncias mesológicas, uma realidade modelada pela experiência, enquanto que o Município atual se ressente de certo artificialismo legal, embora se não possa aceitar a tese extremada de Pontes de Miranda: “o Município de hoje existe porque a lei quer”.  (42) 

Não resta dúvida, porém, que o Município, no mundo contemporâneo não pode, nem deve ser pensado nos termos estatutários do comunalismo medieval, pois constitui uma unidade integrada na vida da Província e da Nação, para atender a certos fins locais, sem prejuízo do todo, máxime tendo-se em vista o volume das tarefas que o Estado Moderno chamou a si, na sua ampla missão de realizar cultura, e não apenas a tutela jurídico-formal.

Nacionalismo e municipalismo podem ser repositórios fecundos de ideias-força, quando situados no sistema concreto e complementar dos valores universais, no primeiro caso, e nacionais, no segundo: o mal está no nacionalismo ou no municipalismo esquecidos dos valores globais, agressivamente centrados no mito das soluções setorizadas e particularistas.

Nem é demais acentuar que o problema da autonomia municipal não está necessariamente ligado ao dos ideais democráticos, pois, consoante justa ponderação de Pontes de Miranda, “um povo pode ser democrático, caracteristicamente democrático, sem autonomia municipal, ainda administrativa, e autocrático, a despeito das garantias do self-government, e, até, do estatuto autônomo”. (43) 

20. Situado, destarte, o problema do Município nas conjunturas da sociedade atual, como elo na cadeia de potenciação unitária das forças políticas do País, percebe-se melhor que, ao lado daquilo que deve ser conferido à Comuna como sua competência privativa, é mister atentar também às condições de seu entrosamento ou integração no conjunto nacional. E do que têm se olvidado os nossos legisladores constituintes e ordinários.

Tais lacunas podiam e podem ser supridas, porém, por iniciativa dos Governos estaduais, desde que compenetrados da possibilidade de dinamizar-se a ação administrativa do Estado através dos Municípios, já, hoje em dia, em condições de serem aparelhados para dar execução, na sua área de competência, a planos gerais traçados para Província, O mesmo se diga quanto à atitude da União, pois os três ordenamentos não devem ser concebidos, repetimos, como unidades justapostas, mas como centros irradiadores de recíprocas influências e serviços.

Sem essa compreensão unitária dos problemas, o Município continuará sendo o "grande resto" da organização política da Nação, vivendo das sobras das discriminações tributárias, à mercê da boa vontade ou dos cálculos dos Executivo nacional ou estadual quanto ao recebimento dos “excessos de arrecadação” previstos nos artigos 15, § 4º, e 20 da Constituição Federal, ou à quota-parte dos novos tributos, consoante determina o art. 21.

Na realidade, ao que temos assistido, com exceção talvez de São Paulo e de um ou outro Estado, é que os Municípios não têm força, nem meios, para exigir dos respectivos governos o cumprimento das obrigações constitucionais, devendo se valer dos recursos fiscais diretamente arrecadados.

Quanto à partilha tributária, fixada no texto constitucional, muito já se tem escrito para apontar-lhe as deficiências, estando em trânsito no Congresso projetos de lei tendentes a fortalecer as finanças municipais graças à maior participação nos impostos federais, ou à transferência de tributos estaduais, como, por exemplo, o territorial rural ou o de transmissão de propriedade imobiliária inter-vivos.

O problema é assaz delicado, dadas as gritantes diferenças regionais, de nada valendo empobrecer o Estado para fortalecer o Município. Por outro lado, este nem sempre cuida de utilizar-se convenientemente de suas fontes de receita, ou por incapacidade administrativa, ou, então, para evitar a reação política dos contribuintes mais poderosos, preferindo receber, sem maior trabalho, o produto da arrecadação levada a cabo pela União ou pelo Estado… 

São, como se vê, sombras que toldam o céu de nosso neo-federalismo, implicando a necessidade de ajustar melhor, com a devida prudência, as conclusões dogmático-jurídicas às infraestruturas sociais, econômicas e políticas. 

21. Não desejamos concluir estas notas sobre a atual situação do Município no sistema federativo brasileiro sem lembrar que, como consequência da perda do sentido integral do problema, ou por amor a um conceito puramente formal de autonomia, quando não por mero espírito demagógico, entenderam os constituintes paulistas de 1947 de bom alvitre extinguir o antigo Departamento das Municipalidades, que devera apenas ter tido as suas funções ajustadas às exigências do regime democrático.

Se alguns Municípios mais felizardos, em virtude do recente surto industrial, contam com vultosos recursos financeiros, propiciados especialmente pelo imposto de indústria e profissões e pelo excesso de arrecadação estadual, e, podem, assim, dispor de funcionários e aparelhamentos técnicos especializados, a grande maioria dobra-se ao peso da rotina, impossibilitados de racionalizar os seus serviços segundo diretrizes seguras.

Seria uma função eminente do Estado, através do órgão de assistência técnica aos Municípios (Constituição Federal, art. 24), sem ofensa, por conseguinte, ao princípio da autonomia, essa de propiciar às Comunas meios eficazes de participarem dos progressos da ciência e da técnica na realização de seus fins peculiares.

Vivemos, porém, ainda seduzidos pela magia das palavras, sacrificando a realidade palpitante por preconceitos brotados da paixão ou da incultura políticas. Daí o desequilíbrio que se nota até mesmo nos Estados de maior índice de civilização.

Não seria, outrossim, incompatível com a autonomia municipal concreta a existência de um órgão estadual, de preferência eletivo, ou com as garantias do Poder Judiciário, para resolver os conflitos que se repetem na vida municipal, com duplicidade de Câmaras Municipais e até de Prefeitos.

Como a Justiça Eleitoral não estende a sua competência para além da diplomação dos eleitos, e a Justiça Comum não interfere, nem pode interferir, na apreciação dos atos de “discricionariedade política”, renovam-se ou perpetuam-se os abusos na esfera municipal, com Edilidades que negam meios aos Chefes do Executivo, e Chefes do Executivo que fazem ouvidos moucos aos reclamos das Edilidades, enquanto o povo assiste, desolado ou em revolta impotente, à derrocada de seus ideais mais caros.

Por outro lado, assim como a Constituição Nacional, em seu art. 8º, parágrafo único, previu um processo eficaz para policiamento de constitucionalidade em tese, subordinando à apreciação do Supremo Tribunal Federal quaisquer atos estaduais atentatórios de determinados princípios básicos, mediante representação do Procurador Geral da República, dever-se-ia ter estendido a medida à órbita municipal, atribuindo-se ao Chefe do Ministério Público estadual o poder-dever de submeter ao exame do Tribunal de Justiça os atos municipais de inconstitucionalidade, nas hipóteses que fossem especificadas, completando-se, assim, o quadro dos motivos de intervenção estatuídos no artigo 23. Eis um caso em que o “paralelismo” na consideração das três pessoas jurídicas públicas fundamentais teria produzido frutos benéficos, evitando-se uma série de males gerados pelo falso conceito de autonomia municipal abstrata.

O federalismo tridimensional brasileiro, marcado pela gradação crescente da positividade jurídica e da responsabilidade política, na sucessividade de seus três ordenamentos, está a exigir, por conseguinte, a compreensão unitária dos problemas recíprocos, a interdependência e a complementaridade dos meios práticos de ação.

Ao municipalismo, estático e quase lírico, que sonha com as Comunas encerradas no casulo de uma autonomia fictícia, é de preferir-se o municipalismo compatível com as conjunturas do mundo contemporâneo, assente sobre comunidades autônomas, concretas e conscientemente inseridas no sistema orgânico das forças nacionais.

Miguel Reale

“Nos Quadrantes do Direito Positivo”, 1960.
 Notas e Referências
 

(1) “O federalismo”, pondera Jacques Secretan, “é um fenômeno constante da civilização moderna” (Nations Unies ou federalisme, Paris, 1958, pág. 59). Tal asserção é válida também para o Direito Interno dos Estados, pois generalizam-se composições híbridas de federalismo e de unitarismo em diversos ordenamentos estatais da Europa e da Ásia, aquém e além da chamada “cortina de ferro”.

(2) A situação atual é bem diversa, pois é ilusória a atribuição da competência residual aos Estados, tal como é solenemente proclamada no art. 18, § 1º da Carta de 1946. Consoante justa ponderação de Orlando M. Carvalho, no Brasil “a tendência centralizadora é manifesta no título inicial da Constituição, relativo à Organização Federal, onde a distribuição de poderes, formalmente favorável aos Estados-membros porque lhes deixa poderes residuais, enumera, entretanto, tais poderes para a União, que realmente pouco restará aos demais níveis de governo” (Relações financeiras da União com as outras órbitas de governo, em Perspectivas do Federalismo Brasileiro, Belo Horizonte, 1958, pág. 81).

(3) Nesse sentido são sintomáticas as atividades de um grupo de alto valor cultural e de grande projeção no meio paulista: refiro-me ao círculo que se constituiu em Campinas, no fim do segundo Reinado, pregando a emancipação de São Paulo, em estudos de caráter literário, filosófico-social ou econômico. Característicos são sobretudo três pequenos opúsculos então publicados, a saber: J. F. de Barros — A pátria paulista, São Paulo, 1887; Martim Francisco — São Paulo independente, 1887; Alberto Sales — A pátria paulista, 1887. Por demais eloquente é a circunstância de que toda a tese de Alberto Sales se funda em pretensas razões filosóficas, afirmando ele que, como a lei da cissiparidade ou das discriminações crescentes constitui um princípio que governa todo o mundo da natureza, consoante a exposição do evolucionismo spenceriano, também as grandes nações estariam fadadas a uma crescente discriminação de esferas de poder, até se desmembrarem em pequenas pátrias. A ideologia positivista não atuou, como se vê, apenas através de clubes militares, mas teve eficácia poderosa nos primórdios de nosso federalismo, servindo de superestrutura teórica para reivindicações de caráter econômico, as quais, efetivamente, constituíam o eixo oculto das definições políticas, prenunciando a necessária transição de uma ordem jurídico-social, fundada na economia agrária, para uma organização de predominante cunho industrial ou financeiro. Igual movimento separatista processou-se no Rio Grande do Sul.

(4) Cfr. o discurso proferido no Congresso Nacional, na sessão de 16 de dezembro de 1890, coligido por Homero Pires na coletânea Rui Barbosa — Comentários à Constituição Federal Brasileira, São Paulo, 1932, vol. I, págs. 60 e segs. No mesmo discurso é que se encontra o cotejo entre o processo centrípeto de formação da democracia norte-americana e o processo centrífugo do federalismo brasileiro, só depois glosado (contra Rui...) por Oliveira Viana em seu ensaio sobre O idealismo da Constituição, Rio, 1927.

(5) Cfr. Ernesto Leme — A intervenção federal nos Estados, São Paulo, 1930.

(6) Barbalho — Comentário ao art. 68.

(7) Castro Nunes — op. cit., págs. 68 e 69

(8) Na reforma de 1926, é bem expressivo o fato de se incluir entre os princípios constitucionais a autonomia dos Municípios, cuja salvaguarda passa a constituir motivo de intervenção federal nos Estados (art. 6º, letra f). Dava-se, assim, outra força e dimensão jurídica ao lacônico art. 68 que se limitava a dizer: “Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeita ao seu peculiar interesse”. 

(9) É no art. 13 da Constituição de 1934 que a entidade municipal aparece com uma autonomia efetiva, graças à atribuição de fontes próprias de receita, insuscetíveis de serem alteradas pelo poder estadual.

(10) V., infra, o trabalho sobre o problema da criação dos Municípios.

(11) Manda a verdade se reconheça que, em alguns Estados, como o de São Paulo, se os Municípios então viram minoradas as suas franquias, tiveram, em compensação, a assistência técnica e legislativa de órgãos, como o Conselho Administrativo e o Departamento das Municipalidades, que contribuíram para a formação de melhores padrões, assim como dos quadros burocráticos indispensáveis à administração local. Grave erro foi a supressão do Departamento das Municipalidades a pretexto de salvaguarda da “autonomia municipal”, para, depois, se recorrer, à margem da lei, mas no cálido bafejo do Governo, ao sucedâneo de entidades de caráter marcantemente político-partidário.

(12) Neste sentido, v. “Revista Forense”, 117/173

(13) V. nota 2 supra.

(14) Santi Romano — op. cit., pág. 149.

(15) Kelsen — General Theory of Law and State, pág. 315.

(16) É claro que estamos apreciando a questão apenas sob o prisma jurídico. Posto o problema no plano sociológico-político, não sei até que ponto se poderá elogiar a consagração de modelo municipal único para todo o imenso e diverso território nacional. Ainda aqui merece ser lembrado o realismo de Rui, antevendo, em outubro de 1889, o equívoco das soluções simétricas, com observações que, por serem cada vez mais atuais, peço vênia para relembrar: “Ora, num Estado como o Brasil, com uma superfície cuja vastidão compreende mais de oito milhões e trezentos mil quilômetros quadrados, um mundo completo no âmbito das suas fronteiras, com todas as zonas, todos os climas, todas as constituições geológicas, todos os relevos de solo, uma natureza adaptável a todos os costumes, a todas as fases da civilização, a todos os ramos da atividade humana, um meio físico e um meio moral variáveis na mais indefinida escala, — o regime da administração local necessita de variar também ilimitadamente, segundo esses acidentes incalculavelmente múltiplos, heterogêneos, opostos, como uma espécie de liga plástica, amoldável a todas essas divergências naturais e sociais num povo esparso em território apenas inferior ao Império britânico, ao Império russo, ao Império chinês e à República americana”. A seguir, diz ainda Rui: “Cada circunscrição territorial requer moldes municipais correspondentes. Uma organização medíocre, observadas as afinidades convenientes entre a sua forma e a comunidade local, a que tem de servir, será sempre incomparavelmente mais frutificativa do que o mais excelente dos sistemas, se não condisser com as exigências orgânicas do núcleo humano, a que se vai ajustar. Releva, portanto, que a organização das localidades varie de Província a Província, diversificando mesmo no seio de cada Província, conforme o carácter, a civilização, as necessidades, a riqueza de cada região, de cada distrito, de cada centro populoso” (Rui Barbosa, Comentários, cit., vol. I, pág. 52 e segs.). Num ponto, porém, o mestre se iludia: era em julgar ser próprio da Monarquia unificada o apego “ao princípio da uniformidade mecânica que atrofia a vida local”...

(17) V. acórdão na Representação nº 96, in Arquivo Judiciário, vol. LXXXV, fasc. 1º. 

(18) Cfr. Castro Nunes — op. cit.; Levi Carneiro — Problemas Municipais, Rio, 1931, pág. 76 e segs. e Amaro Cavalcanti — Regime Federativo, pág. 367 e segs.

(19) Bryce — The American Commonwealth, vol. I, 9ª edição, 1931, pág. 596.

(20) Pontes de Miranda — Comentário à Constituição de 1946, vol. I, pág. 486.

(21) Bielsa — Régimen Jurídico Comunal, in “Anuario del Instituto de Derecho Público”, 1938.

(22) Carlos Maximiliano — op. cit., vol. I, pág. 352. L, págs. 68/69.

(23) v. Wheare — Federal Government. 3º ed., 1953, págs. 2 e segs. Cfr. Pinto — La Crise de l’État aux États-Unis, 1951, págs. 7 e segs.

(24) Cfr. Leda Boechat Rodrigues: A partir de 1937, abandonando a proteção judicial do “laissez faire”, relegou a Corte Suprema ao olvido a jurisprudência restritiva dos poderes do Governo, reconheceu e aceitou a expansão das atividades nacionais e abdicou em favor do Congresso, da função que Taney lhe atribuíra, há perto de 100 anos, de árbitro do sistema federal. (...) A concentração do poder nacional, como resposta inevitável ao crescente industrialismo e à concentração do poder econômico, conjugada à convicção de que a descentralização exagerada impossibilitaria a ação do Governo, ao lado de vários outros fatores, tornou obsoleta essa atribuição de funções” (A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano, pág. 196).

(25) Sobre a sobrevivência dos Estados como segundo termo da ordem federal, cfr. Laski — The American Democracy, 1948, págs. 138 e segs., e Roger Pinto, op. cit., págs. 23 e segs.

(26) Leda Boechat Rodrigues, op. cit., pág. 196.

(27) v. Tocqueville — De la démocratie en Amerique, t. I, cap. V; A. Siegfried — Tableau des États-Unis, 2ª ed., 1954, págs. 246 e segs.; James Bryce — loc. cit.

(28) v. Aliomar Baleeiro — O direito tributário da Constituição, 1959, pág. 23. São deste livro as seguintes observações: “De passagem, convém relembrar que a tarefa se complica mais na poderosa República porque, lá, não há apenas municípios como forma de subdivisão política ou administrativa dos Estados, mas diversas comunidades locais de maior ou menor importância que, não raro, se repartem em outras também investidas de poder fiscal que lhes delega o Estado-membro. Essas subdivisões locais são classificadas como rurais, das quais os tipos mais representativos se encontram no county e na township, e urbanas, que grupam a city, a town, a village e o borough, além de paralelos school districts, que também gozam da autonomia de receitas. Às vezes, segundo Fikes e Stoner, a arrecadação é feita por uma das unidades e o produto se rateia pelas demais que integram outra unidade de nível superior. Silente a Constituição Federal sobre os Municípios e governos locais, a situação política e jurídica destes emana das constituições e leis dos Estados-membros, de sorte que a sua competência fiscal é delegada, em contraste com o município brasileiro e de outros países americanos, nos quais o poder tributário aparece originário, fundamentado na Carta Magna da Nação, por tradições históricas ligadas às instituições ibéricas”.

(29) C. Durand — État fédéral et État unitaire décentralisé, na coletânea L’évolution du droit public, em homenagem a Achille Mestre, Paris, 1956, pág. 196.

(30) Cfr. Burdeau — Traité de Science Politique, Paris, 1949, t. II, pág. 344.

(31) Entre nós, diga-se de passagem, se a Suprema Corte fulminou, com acerto, nas Constituições dos Estados de São Paulo ou do Rio Grande do Sul, preceitos incompatíveis com o presidencialismo, em outros casos levou muito longe a exigência de paralelismo entre a União, os Estados e os Municípios, quase que erigindo tal critério de simetria em princípio constitucional implícito.

(32) V. na Constituição Federal o remédio específico da “representação” ao Supremo Tribunal Federal (art. 7º, n. VII, letra e, combinado com o art. 8º); a garantia do mandado de segurança contra qualquer autoridade responsável por ilegalidade ou abuso de poder (art. 141, § 24), além do princípio da universal tutela jurisdicional (art. 141, § 4º).

(33) Como exemplo de entidades com ampla autonomia político-administrativa, mas sem caráter federativo, temos as “regiões” italianas, dotadas de autonomia financeira “na forma e nos limites das leis da República” (Const. italiana, art. 119) e com autonomia legislativa, subordinada a duplo controle: tanto de legitimidade, perante a Corte Constitucional (e até aqui não haveria ofensa à ideia federalista) como de mérito perante o Congresso Nacional (art. 127), o que seria inadmissível numa Federação. No entanto, para cinco regiões, entre as quais a Sicília e a Sardenha, a Carta Magna peninsular, em seu art. 116, confere “formas e condições particulares de autonomia, segundo estatutos especiais adotados mediante leis constitucionais”, o que representa uma forma híbrida de federalismo.

(34) Essa concepção do Estado Federal corresponde à doutrina da gradação da positividade jurídica por nós exposta e desenvolvida em Teoria do Direito e do Estado, 3ª parte. Por aí se vê que não aceitamos in totum o pluralismo jurídico que não distingue entre o Estado e as demais instituições, nem atende às diferenças de positividade jurídica verificadas no seio de um mesmo Estado.

(35) v. Sampaio Dória — Autonomia dos Municípios, na “Rev. da Fac. de Direito de São Paulo”, 1928, pág. 425.

(36) v. F.  J. Goodnow — Municipal Government, 1919, pág. 87.

(37) Cfr. Temistocles Brandão Cavalcanti — Instituições de Direito Administrativo, vol. I, pág. 76.

(38) Charles A. Beard — American Government and Politics, 1924, pág. 705 e segs.

(39) Como observa Edmundo Zenha, fundado em sólidas bases históricas, “no período colonial dos dois primeiros séculos, o Município se apresenta à face do governo geral ou da Corte desimpedido de qualquer intermediário…” (O Município no Brasil, 1532-1700), São Paulo, pág. 26.

(40) É ainda de E. Zenha a ponderação de que “a única extensão estatal que o colona pôde realizar no país fracionário, quase caótico, foi o Município” (op. cit., pág. 132).

(41) Cfr. José Pedro Galvão de Sousa — Política e Teoria do Estado, São Paulo, 1957, pág. 38: “O Município luso, no Brasil, coloria-se ao sol dos trópicos, tomava o sabor da terra, das condições geo-econômicas dentro das quais iria desenvolver-se a sociedade patriarcal. Modifica-se, pois, não obstante manter as mesmas linhas básicas e estruturar-se pelas diretrizes da legislação reinol.

“Dada a preponderância dos chefes patriarcais e a dependência em que ficava o município com relação ao clã rural, o aspecto democrático do concelho português tinha de ser muito atenuado. Nos municípios brasileiros o caráter aristocrático era mais frisante. Longe de ser excluída da vida municipal, a nobreza da terra a dirigia”.

Esse fenômeno de adaptação dos institutos jurídicos às circunstâncias brasileiras foi bem posto em evidência por Waldemar Ferreira em sua História do Direito Brasileiro, São Paulo, 1951/1956. O mesmo fato se deu em toda a América espanhola, notadamente quanto às instituições municipais, mesmo porque, como nota Altamira, “o característico dos legisladores metropolitanos e americanos foi deixar livre a vontade e a apreciação das circunstâncias regionais e locais aos fundadores de povoações nos territórios que se iriam descobrindo e dominando”. Em virtude das distâncias e da necessidade da ordem, que é o valor de caráter mais urgente, compreende-se que então cuidassem os povoadores de se organizarem espontaneamente, invocando o “direito natural” para legitimar a própria iniciativa. Cfr. Rafael Altamira y Crevea — Plan y documentación de la historia de las municipalidades en las Indias españolas (siglos XVI-XVIII), em Contribuciones a la historia municipal en América, México, 1951, pág. 15 e segs; e Carlos Mouchet Las ideas sobre el periodo hispano-indiano, em “Revista de la Fac. de De Derecho y Ciencias Sociales”, Buenos Aires, 1955, nº 44, pág. 751 e segs.

Nem faltaram nas Câmaras de então os males que hoje verberamos: “gente baixa na Câmara, por efeito da corrupção pelo suborno... Foi assim no século XVII”, eis como Waldemar Ferreira arremata um dos admiráveis capítulos de sua obra O Direito Público colonial do Estado do Brasil sob o signo Pombalino, Rio, 1960, pág. 63. Nem tudo, pois, eram luzes nos Municípios coloniais.

(42) Pontes de Miranda — Com. à Constituição de 1946, vol. I, pág. 478.

(43) v. Pontes de Miranda, op. cit., pág. 482.